Para quem ama no escuro.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Oração


55

          Para  Luz Fandinho, ateia

Oração


Recito a cada alma antes de acordar,
aos espíritos dos anjos e as fadas,
às donas da palavra que chegou do ar,
ah, mártires que somos cada dia!
O meu cabelo ainda cheira a mar,
as nove ondas me arrastaram,
as nove ondas me livraram,
em nove ondas nove mortes,
nove vezes afoguei,
rebelei meu espírito
ao lume sem ar.
Sobre a areia recomeçam sonhos
e lágrimas de sal,
fora o tempo do chá de canela,
o tempo de iniciar,
a ânsia única
de mãos nas mãos,
irmãs.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Leitura


54

          Para Juanel Ponte

Leitura



Oscila o sentido entre dois pontos cardinais.

De Leste a Oeste acharei a fé,
porque é imensa, omnisapiente
e chega ao ser.

Trás a noite escuta a intensa luz.

Não ceguei e sigo o meu caminho
no estatismo pleno do verão.

Se a sombra é longa,
é longo o mar.

terça-feira, 14 de abril de 2015

Quarto selâm


53

          Para Alberte Momán

Quarto selâm 

Alma tranquila, volta ditosa,
entra junto aos meus servidores,
entra no meu paraíso.

É breve todo gozo,
perdura a memória
e sou feliz em instantes reiterados.

Volto a ti, plena de gozo,
volto a mim.

Abre-se a terra,
deixa o meu tempo resplendor,
a paz é o meu saúdo
unida à Seyh Efendi
e à minha Basi,
sou semâzen.

O anjo da aurora me acompanhou,
o livro conforta a sede que desceu,
tenho os profetas da noite na pele do mundo,
o verso longo a acariciar.

Voltarei.

Sou o teu espelho.
O espírito da luz.



segunda-feira, 13 de abril de 2015

Terceiro selâm


52

          Para Fátima Vale

Terceiro selâm

              Fenafillah

Submeto-me a sentir
e sinto.
Os afectos deixam redes
que sustentam,
o amor e a dita.

Deixo-me ir,
entrego submissão ao amor,
única submissão ao Ser.

Entrego o espírito,
entrego o corpo,
entrego a mente que pensou
no  Fenafillah


domingo, 12 de abril de 2015

Segundo selâm


51

          Para Inma Doval

Segundo selâm 


Reflecte-se no brilho,
no som da aurora,
na bétula doce,
na ternura desta pele
o dom da criação,
o esplendor do criado.
Giro e oro, oro e giro,
moldo a rocha em silêncio
e saudade de luz,
ante o poder sereno da criação,
ante a força e o amor.
Haja paz na paz dos tempos.

O gozo é contemplar,
saudar o bem eterno.

sábado, 11 de abril de 2015

Primeiro Selâm


50

          Para Ana Blanco

Primeiro selâm 

Abro os braços,
alço a luz
e nasço.

Ergo a mão ao alto,
desço a outra palma,
o equilíbrio é o ponto de inflexão,
a verdade, o ritmo desta rota
e giro;
retorno à descoberta
e reconheço a força.

Sou criatura
entre os ventos e este rito.
Sou a tua criatura,
molda-me na dança,
insufla em mim a vida dos espíritos,
a vida pura da verdade.
Leva-me na conjunção do devir,
no fado,
nas linhas tortas que escreves,
na paz que me entregas,
à que me entrego.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Semá


49


          Para Alba Bétula

                     Semá

Tiro a vestimenta e peço permissão.
Nasço na tomba dos desejos,
nasço na mortalha dos desejos,
e entrego a túnica por ser.
Beijo a mão que se oferece,
ah meu Seyh Efendi,
permite a liberação,
permite a unidade
do possível:
a ascensão!

O ritmo é lento e volta sempre
ao início num círculo exterior,
o som dos ecos repele palavras
como vidas.
Na solidão acho companhia,
integro o ser que me integra,
respiro o ar que me respira,
achego o abraço que me achega.
Os passos giram.
A árvore da vida começou.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Devri veledi


48

          Para César Morán


Devri veledi

Cada anjo chega numa onda.
Os mares dos quatro pontos cardinais
e o tempo saúdam ao sem tempo,
o espaço ao sem espaço,
a unidade à companhia.

A água é água,
o lume é lume,
o ar é ar,
a terra é terra.
Para entornar ladainhas nasce a vida.

Saúdo a linha do silêncio,
a frustração da recta,
o abismo do leito,
a fé prendida no som múltiplo.
Saúdo o tempo das saudades,
o labirinto das perdas mais sentidas,
a curva no caminho,
o nome errante,
o destino errado sem destino.
Saúdo a queda das palavras
o sonho azul na fé prendida,
o círculo que volta,

e recomeço a múltipla onda,
a alma múltipla.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Taksim de Ney


47


          Para Flor e Daniel Caxigueiro


             Taksim de ney

Esta é a noitinha.

Sobre as montanhas o céu é vermelho.

Aguardo a nave que não chega,
o tempo que não passou
quando o silêncio é espera
e a aurora, um pôr de sol.

Aguardo a mão dos sonhos,
a que nunca mais sonhou,
braços cruzados no peito.

Arde a fé
em fé de cor.

terça-feira, 7 de abril de 2015

O som


46

          Para Belém Grandal
                      
                  O Som 


A rocha mede a água,
os gases cobrem
os espaços do pranto
e o sorriso.

A pedra é nave de esperas
e luz do sol-pôr.

Desde o resplendor da tardinha,
as ondas são céu
e, na noite, as estrelas vão brilhar.

Dos longos caminhos,
os tempos serão,
ordem deste caos.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Na´t-i serîf




45

       
          Para Xoán Abeleira

         Na´t-i serîf

As vozes do vento,
e das aves, e da água.

A harmonia dos céus na ordem que precede ao caos,
no caos que precede à ordem.
O resplendor da areia,
o frescor do carvalho e a oliveira,
do baobab e a cerejeira.

O ritmo do lume dançante,
o odor da praia na noitinha,
a noite fria do deserto,
a montanha alta,
o rio.

Cantarei o verbo, fluir do coração,
no lábio de quem tem lábio,
nos olhos de quem olhou.

Cantarei a fonte do saber,
a alma universal,
a pele do cosmos,
o dom dos que não têm dom.

Cantarei as mãos, as poutas,
a raiz, a sem-raíz,
a esplêndida navegação da alga,
a asa cantarei.

Cantarei o mesmo canto da esfera,
o eco planetário da molécula,
a luz dos que têm luz,
a noite de quem sonhou.

Do ruído a paz chega.
Entre a brêtema abre o dia.
Entre a morte a vida aprende.
Da rocha nasce o manancial.

Tudo canta
a geração universal da existência
na ladainha das estrelas,
as vozes do vento
e das aves e da água.
Ao criador do canto,
tudo canta.

CANTO VI SEMÁ


domingo, 5 de abril de 2015

Voltamos


44

 Para Hugo Da Nóbrega Dias

Voltamos.
Havia um muro de pedra coroado de espinhas.
Havia um templete no jardim.
E o monte sumira na distância de especuladores brancos.

Por isso perguntei à ermida e aos carvalhos tristes,
e aos penedos sós,
por espelhos de ilhas,
e tomei nome de barca nas tardes da infância e a erva livres
mimetizadas em alga, ou insectos salgados de ribeira.
E procurei pente a beira-mar,
rumo a Cortegada,
terra-povo,
viveiro de um berro feito som,
onda que revolta tempo e lua nos solstícios da noite,
uma canção.

sábado, 4 de abril de 2015

Marisqueiras


43

         Para Viki Rivadulla

A praia era rasto de gaivota e pé de mulher. 

Chegavam os banhistas e as ondas.
Chegavam já os canos até o mar
e a semente perdia o seu cheiro primitivo,
odor de lembranças e loureiro,
de pólvora e rocha revestida,
de alga e micélio, ferro e pão.

Perturbados horizontes entre o fumo
e o negócio de luz a planear 
na velocidade, na noite, no ouro
sem espera ou amanhã,
enquanto as ondas vermelhas reflectiam
mais uma morte que as que perde o chão,
e afogavam o rochedo, mesmo a árvore,
entre sombras ainda a mariscar. 

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Conchas


42

          Para Manolo Pipas


Baixa o Ulha. Sobe o oceano.
A terra abre leiras sob o mar,
os quintais reflectidos das estrelas
que cultivam aquelas minhas mães
de força e saudade.

As saias deixavam-se partir
nas costas encurvadas
a leirinhas de colheita animal,
submergidas na herança de canastros
e nos pés do silêncio,
por colunar conto comunal com concha viva
e retornar areia a navegar.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Sereias


41

          Para Alba Maria Diaz

Na longa carvalheira das galaicas
legava-se o livro dos sonhos,
à ternura do sol-pôr a pé do mar.

Agora fica a terra, apenas eco.
Fica a ria a destecer este aço líquido,
o farol  breve do porto a retornar,
e fica em mim a voz de cada pedra,
a esperança da ilha a beira-mar
na nave das justiças,
 junto ao rasto vivo
das agricultoras leves da maré
com pele de alga e voz formosa.

As sereias de viveiro no minguante
cantam nas conchas alalás.

CANTO V CORTEGADA


quarta-feira, 1 de abril de 2015

As rochas de Caleac



40

          Para Óscar Varela

Falam os últimos sonhos da cabana.

À beira da tardinha ainda chama
até a saudade do bardo, por cantar
o cheiro a sal do último povoado
de lares tenros e voz perto do mar.

Dizemos hinos com vozes renascidas.
No castro alenta o verde coração,
e as ilhas tendem leitos de druida.
Volta a alvorada à casa do sentir,
carícias de harpa e povo a latejar.

Beija-me ainda e sempre sob os carvalhos
da terra boa na que temos raiz.
Revoltemos som de labirinto atlântico
neste tempo de tempos,
nas rochas de Caleac.